01 dezembro 2009

São Horas


9.00 am.
Toca o despertador.
Ela levanta-se, arranja-se, toma o pequeno-almoço, sozinha, na cozinha. Como sempre.
Cada movimento é feito lentamente como se de um passo cirúrgico se tratasse, como se dele dependesse a vida de alguém.
Vagueia pela casa, perdida entre quatro paredes. Perdida num mundo falso e mentiroso, num mundo imposto por quem nele não quer viver e por quem dele quer sair, mas não se digna a sair, nem sequer a tentar.
Senta-se no sofá, liga a televisão. Zapping para a frente, zapping para trás. Já percorreu todos os canais que tem. Muda a posição no sofá. Chamam-na para o almoço. ‘Já?!’ questiona-se Ela, que pensava ter acabado de acordar. São 2 da tarde.
Não sente vontade de comer. Come simplesmente por necessidade, porque tem de alimentar o corpo para ele se mexa nesta monotonia mórbida.
- ‘Come! Despacha-te! És sempre a mesma coisa…sempre a engonhar!’
-‘Eu não sou como tu, não gosto de comer como quem tem pressa de ir para o comboio. Gosto de comer devagar [não me apetece comer, pensa Ela]. Se estás com pressa, vai tratar da tua vida que eu trato da minha. Deixa-me comer em paz…[por favor…]’
- ‘Tem agora algum jeito?! Anda lá, come depressa, que quero ir trabalhar, mesmo não querendo, e não me quero empatar!’
-‘Se tens de ir trabalhar e estás com pressa, vai. Não preciso das tuas mãos para comer, não te empates por mim. Trata da tua vida’
-‘Não te estou a dizer que me empatas, estou a dizer para te despachares que tenho pressa! Mexe-te!’

Ela continua a comer ao seu ritmo, mas perde a fome. Desiste de continuar a refeição, se é que se pode chamar assim. Desiste de alimentar o corpo, tal como desistiu de se alimentar a si mesma, por comentários como este, por comentários com os quais vive constantemente. Comentários esses que lhe entraram pelos ouvidos e lhe penetraram a alma desde que chegou da maternidade. Se calhar, desde que foi concebida. Ou talvez antes ainda… quando não passava de um sonho de alguém.
Ela não come mais. Sai de casa com a Contradição. Tomam café. Contradição finge ser alguém que não é, para com os presentes no estabelecimento. ‘Ou será que ela é mesmo assim, e finge só para mim?’, pensa Ela.
Contradição segue para o trabalho. Ela volta para casa, para o sofá e para o zapping.
Ela sonha acordada com um mundo lá fora, com um mundo que não existe. Na verdade, sonha com um mundo que sabe existir, que já experienciou, mas que em casa não acreditam existir, porque não o aceitam. Não completamente. Dizem aceitar, mas da boca para fora. Já diziam os antigos: palavras… leva-as o vento.
Não dá nada de jeito na televisão. Sempre as mesmas séries, as mesmas linhas de texto, sempre frases ‘filosóficas’, frases ‘iluminadas’, frases feitas e falsas, frases que são ditas com obrigação e ‘por que ficam bem’, frases e sentimentos fingidos por um maço de papel verde com valor na bolsa, mas sem valor na alma e no coração. Sem amor.
Já são 18horas. O mundo gira, mas lá fora. Cá dentro, nestas quatro paredes, tudo continua estagnado. Ela olha para a rua, pelo pedaço de tecido pendurado na janela. Vê um sol dourado que, por hoje, já fez a sua função, mas que ninguém soube aproveitar, que ninguém soube ver ou dar valor.
Ela como que acorda, e decide fixar o Sol com o olhar fechado. Sente-se cheia, com vida. Lágrimas salgadas escorrem pela face delicada. Ela deixa-as cair… e cair… cair… Começa a sentir-se ela, na sua essência que ninguém consegue ver, apenas Ela. Apenas Ela a sente e sabe que existe.
Ela abre os olhos. O mundo que está à sua volta não é o seu. Agora Ela sente a coragem, a força que nunca teve.
Levanta-se do sofá, que sempre acompanhou a sua vida.
Contradição e esposo entram pela porta: ‘Então, sem fazer nada hein? Boa vida…’, comentam.
Ela vai ao quarto, ao seu mundo intimo, pega numa mochila de trapo, escolhe incensos, livros que tocaram a sua essência, amuletos e algumas fotografias. Ata um casaco à cintura e sai.
-‘Onde vais dessa maneira?!-não viste que estávamos a falar contigo?!’
-Estavam? Não dei conta. Viram que eu estava cá? Hm… não é habitual. De qualquer das formas, vou deixar de estar mesmo. Até à vista’

Ela sai pela porta que limita o mundo falso que lhe fora imposto. Sai rumo ao desconhecido.
Sai rumo ao Sol dourado…
Sai rumo ao infinito do seu ser.
Sai rumo à sua essência que não pode ser desperdiçada.
Sai rumo à demanda da sua alma.
São horas… horas de começar a ser Ela mesma.
Ela.


Ana Raquel Joaquim

1 comentário:

Carol disse...

gostei mesmo muito.

já sabes o teu caminho, já sabes quem és. Continua